segunda-feira, 2 de abril de 2012

Jardim Eldorado - Heron Sena

[Olhem que coisa maravilhosa! Heron Sena (ator baiano que está morando em São Paulo) escreveu o texto pro Gritando com a Mão com tanto cuidado que até emociona! Obrigado Heron! Muito bom!]

Decidiu fazer um bar de bem quistos
deram na telha erguer um templo
compartilhar a revelia sustentável
de uma terra já roxa de fertilidade

Assim foi porque era chato pra si
comer carne da mesma carne
para manter-se forte e imortal
... mediante tantas ambições, desejos

Deu-se assim por não ser mais dado
nem a predileções, nem a nomadismos
abriu a taberna, arrumou o cabelo
e se declarou liberal, antropofágico

Brotaram das mais variadas essências;
desde conhecidos incensos de monge
a ervas subsaarianas, cadinho de hari-boo
deixando o salão repleto de coloridos

E durante muitas luas cheias exaltaram,
se encheram de Yagé e gostaram
é como estar na Babel tupiniquim
tomando café por cima da carne seca

Chamaram Anhangabaú até de santo
e arcou com os martírios, os encargos
virou espirito do mal, contra exemplo
mártir da libertinagem na Latino-América
 

Altas da madrugada, num ritmo acelerado
nas rodas de tererés e fumo de corda
conheceu uma ninfa de shape Rapa Nui
queimou de amor tal qual cinza vulcânica

Era impressionante como irrompia
ao som dos maracatus mais softs
dos pés colidindo como rocha no chão
escorrendo por entre ciganas e orixás

De dia ensinava-lhe a olhar as estrelas
plantar e colher, fertilizar e vender
a noite ela era como o sol, verdadeiro moai
ensinava a chorar, inspirava-o a beber

Perdeu-se numa nuvem piroclástica
com essa deusa construiu um império
prometeu-lhe a vida eterna em festa
incluindo chá, fumo e com quem dormir

Floresceram as mais variadas essências;
desde conhecidos incensos de romaria
a ervas dos alpes, cadinho de manjericão
deixando o salão repleto de coloridos

E durante muitas luas cheias exaltaram,
molharam a barba de cerveja e gostaram
é como estar na Babel tupiniquim
tomando café por cima da carne seca


Então a festa foi ficando careta
as flautas começaram conflitar
com os tambores, banjos, foles
e todo folclore conservador

O que aos olhos pode ser tentação
á vista mais longe pode ser dádiva
onde a vista se quer alcance, sonho
então o amor se curvará à cobiça

Arrependido num boteco perdido
um preto abriu-lhe um largo sorriso
disse que se chamava negro Ganga
e deu do Preto-velho um aviso

Escute a velha altarquia de mesa bar
esse meu cachimbo e a cachaça do lado
diz qui não há perna cambaleante
que não tombe cansada em pleno Eldorado

Pagou a conta, chutou o pau da senzala
foi atrás do tempo leve como jaguatirica
e para sua mente voar léguas nos pampas
resolveu deixar um legado histórico

Concedeu aos filhos queridos
e aos convidados ditos ilustres
toda a literatura romana
o trabalho laboroso, a república


Cada braço, cada peito, cada cabeça
todas as mentes doentes e salutares
qualquer que seja o sujeito aqui
têm por dever erguer seu Eldorado

Achou que tinha entendido velho Ganga
que mesmo liberto não abriu seu sorriso
vendo o índio sumir no horizonte cerrado
abandonando porque quer seu espaço

Ai, germinaram as mais variadas essências;
desde desconhecidos perfumes de marca
a iguarias exóticas, cadinho fedendo
deixando o salão deveras monocromático

Durante muitas luas cheias exaltaram,
encheram a rabo de vinho e gostaram
é como estar na Babel tupiniquim
tomando café por cima da carne seca

E sua pequena ilha de amor eterno
princesa Polinésia da Ilha de Páscoa
arrefeceu, virou Itaboraí no pernambuco
deixando apenas sua espuma de mágoas

Quanto sua prole real de mestiços
conheceu a vida à mercê,
á revelia com os convidados
em saunas, praças, buffets

Ele fugiu de Cadillac por entre estradas
curtiu até outras festas menores
em lugares diferentes, carentes
e achou tudo muito chato

Se viu gingando por entre diásporas
que atrás de carrancas perecem
sem terra, sem teto, sem pratos
se sentiu tocado, decidiu raciocinar

Foi pedir conselhos a mãe Oxum
e no espelho d’água viu o semelhante
aprendeu ali nova forma de comer
deu-se que ilusões se foram no iguaçú

De mãos dadas a Anhanguera retornou
rolando de amor Serra do Mar a baixo
elucubrando como retomar o império
quem sabe, fazê-lo menos vegetativo

Mas seus filhos não reconhecem tua face
não têm na sua pele essa tinta pintada
não têm na sua carne o gosto de peixe
seu penacho estampa uma vasta careca

Alienado, resolveu aceitar o intolerável
exercer o direito a um emprego
morar até em gavetas diferentes
se armar dessa tal idoneidade

Porém de baixo pra cima demora
é paulatino, paulistano, cansativo
vêm percalços de todos os lados
burocracia, ensino, sociedade civil

Já havia daninhas de variadas essências;
desde perfumes com cheiro de cola
a iguarias em pó, cadinho putrefeito
deixando o salão deveras colérico

Durante poucas luas cheias exaltaram,
encheram o cu de cachaça e gostaram
é como estar na Babel tupiniquim
tomando café por cima da carne seca

Só que seu semelhante era diferente
o tempo não tinha o adestrado
num desses desconfortos estéticos
a violência o atingiu na cabeça

O guerreiro não come como antes
a corrida que poderia ter dado
para resgatar a linda Rapa Nui
não pôde dar por Anhanguera

Desde então aceitou a mortalidade
perdeu o tesão e o gosto pela terra
cada cigarro que acende para sí
acalenta, acelera e o acaba

A antropofagia não faz mais sentido
não há mais guerreiro a ser comido
não há mais carne humana nutritiva
não há mais o prazer de ir à caça

Hoje Anhangabaú tem nome católico
não estende mão à caridade, mas precisa
do vento, de sua virilidade sequestrada
que quer onde esteja, não voltará de graça



- Heron Sena -

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